quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Pesquisa de linguagem do Balé Baião


A Estética e a Poesia do Corpo fragilizado
Sempre escuto de outros coreógrafos e bailarinos que assistem aos espetáculos do Balé Baião a mesma afirmação: “teu trabalho é interessante principalmente pelos corpos comuns do elenco, pela naturalidade e tranqüilidade que demonstram em cena...”
Essa colocação por certo tempo me deixou pensativo sobre o que seriam esses “corpos comuns” e essa naturalidade, então comecei a investigar dentro da Cia que corpos estavam ali e que tipo de movimento eles me davam.
Fui percebendo que os primeiros elencos que acompanhei (foram quatro ao todo) não tiveram oportunidade de conhecer técnicas e códigos diversos de dança. Os dois primeiros elencos da Cia não desenvolveram a habilidade de criar seu próprio caminho coreográfico, resumindo-se a meros receptores de "passos". Sem falar do limite de "presença cênica" pela ausência de "corpos treinados", resultando em espetáculos repletos de coreografias complexas executadas por dançarinos que deixavam a desejar.
A partir do terceiro elenco houve um investimento prioritário na formação técnica dos bailarinos em exercício permanente da criação individual e coletiva do movimento expressivo.
Diante disso o que estava faltando nos bailarinos da Cia? A resposta veio nos laboratórios de criação. Percebi que era exatamente essa "falta" a responsável pela singularidade de meu trabalho coreográfico. Eu só precisava dar oportunidade para que cada bailarino preenchesse essa falta com autonomia e personalidade.
Desde que passei a trabalhar a partir da improvisação de cada um, não mais me incomodei com os chamados "corpos comuns", eles passaram a me fascinar. Entendi que não funcionava proporcionar nos bailarinos somente a capacidade de se manter natural, era preciso que fossem eruditos no que faziam, que seus corpos zelassem pelo intuitivo e ao mesmo tempo surpreendessem com o movimento técnico adquirido em aula. O que na verdade existe em todas as companhias de dança são corpos comuns que nunca deixarão de sentir dor se forem machucados, nem serão plenamente perfeitos mesmo sabendo executar sem erros a seqüência coreográfica aprendida. Não é privilégio do Balé Baião trabalhar com corpos comuns, pois todo corpo de qualquer bailarino traz em si características comuns à todos os outros corpos existentes no planeta, principalmente fragilidades que sempre nos alertam para a presença inevitável da imperfeição. O limite é parte do ser humano e existe para sinalizar o momento certo de não ir além, de parar para escutar, de aceitar as leis naturais da existência. No entanto, esse limite pode ser poético quando assumido em cena. Surge daí uma nova tentativa de superação desse limite, não baseada em "virtuosismos" desnecessários que geralmente fazem o público delirar e ao mesmo tempo o distancia daquela realidade cênica por não provocar adesão sensível ao que está sendo dançado. A grande novidade é permitir que em cena o corpo expresse sem temer suas fragilidades e nisso gere identificação no público, no sentido de "abrir portais" para que cada pessoa se perceba dentro do espetáculo, nas fragilidades e fortalezas dos corpos dos bailarinos. Esse "corpo comum" que se meche naturalmente é na verdade uma pessoa que resolveu dançar utilizando-se de todas as técnicas possíveis, porém priorizando valores cênicos de sua própria personalidade adquiridos no decorrer de sua história particular, em contato com distintos espaços e pessoas.
Procuro observar em aula o que os bailarinos trazem de elementos particulares que não devem ser destruídos em nome de uma técnica ensinada. Muitas vezes são "vícios" que se apresentam agressivamente aos nossos olhos, mas que naturalmente vão desaparecendo à proporção que o bailarino se alimenta de novas vivências corporais. Por outro lado, são trazidos gestos e movimentações originais que revelam a identidade e as características singulares do bailarino. Percebo com isso que a intuição jamais deve ser substituída por "receitas prontas" de como dançar. A dança deve ser insultada pelo professor e construída gradativamente pelo próprio bailarino a partir de sua pesquisa individual.
Dançar com a consciência de que o espetáculo expõe meu corpo, toda sua pequenez e grandeza, é possibilitar um novo olhar e uma nova concepção do que seja espetáculo, do que seja arte, do que seja dança. As miudezas passam a revelar suas expansões e os grandes movimentos as suas miudezas; cria-se um conflito que se apropria das inconstâncias, das buscas e achados do gesto humano.
Dançar com essas perspectivas me faz pensar que meu corpo é visitado por todos os que me contemplam. Passo a ser reflexo de todos os corpos que participam da dança de minha vida. Público e eu dançamos em sincronia estabelecendo diálogos silenciosos.

Metodologia de ensino-construção: Movimento enquanto busca particular
Atualmente são muitos os caminhos que apontam para a construção da dança particular do bailarino contemporâneo, todos partindo de princípios comuns que se nutrem de técnicas e sistemas criados por vários pesquisadores de movimento corporal reconhecidos em todo o mundo como Von Laban na Alemanha, criador da dança-teatro, dentre outros.
Quando um autodidata em dança passa a conhecer várias técnicas de codificação do movimento (Balé Clássico, Dança Moderna, afro, tradicional, entre outros), é inevitável: ele entrará em crise artística. Antes de ter acesso a técnicas, a dança do autodidata é construída a partir do pouco que se captou do mundo, estabelecendo um trabalho bem mais artesanal no sentido de fazer esse "pouco" render infinitamente. O acesso a muita informação técnica possibilita o encontro com os códigos universais de dança; conscientiza que são poucos os inventores e muitos os que aderem a invenções prontas. Ao entrar em estúdio para criar uma coreografia, a impressão que se tem é que desapareceu a “criatividade intuitiva” para que apenas haja uma reutilização artificial de seqüências coreográficas aprendidas em aula. A princípio, a necessidade de mostrar o que foi aprendido supera o antigo desejo de "criar por conta própria", e quanto a isso não há outro caminho senão o de esbanjar todas essa bagagens até que novamente se esgotem. O que acontece em seguida é um novo esvaziamento, uma ânsia em ser autêntico mantendo a consciência de que se é herdeiro de todo um processo outrora iniciado.
Falar de minha experiência particular no Colégio de Dança do Ceará e de minhas recentes atuações na Escola de Dança do Balé Baião é falar de descobertas que reverberam no trabalho que desenvolvo enquanto criador e artista-docente não somente em Itapipoca, mas na região e estado, experiências que me fizeram perceber o quanto é fundamental proporcionar ao aluno-pesquisador logo em seu primeiro contato com a dança o acesso a si mesmo, a seu corpo enquanto potencial sensível, afetivo e criativo.
Dentro dessa metodologia contextualizada, inserida na realidade concreta do corpo do adolescente, deve-se dar condições para que ele conheça o que já foi criado e nisso enriqueça seu acervo de conhecimento em dança. Logo após é preciso que se questione sobre a dança buscada pelo aluno; que dança se quer construir? Este será o insulto que provocará rompimentos com tudo o que fora absorvido anteriormente, e por certo fará nascer uma verdade individual que deixará evidente a beleza e a dignidade de um corpo falando de si mesmo, compartilhando suas especificidades com cada pessoa que faz o todo do público.
A dança do Balé Baião é resultado da fusão das danças particulares de cada bailarino da Cia. No decorrer do processo de formação dos bailarinos foram se definindo aptidões de movimento a partir de "facilidades" que foram descobertas individualmente em desafios lançados nas aulas. Essas facilidades foram acolhidas não como definição de estilo, mas como pressupostos para se investigar e possivelmente construir algo. Esse "fácil" na dança apontado pela Cia não significa conformismo diante do que se sabe fazer, e sim uma "base matriz" que vai se complexificando no exercício da repetição e de quebra súbita do movimento.
Cada bailarino do Balé Baião procura ter a consciência de que não há "dança definitiva" por não existir "dança acabada"; sempre há problemas a se resolver no movimento e uma constante insatisfação que motiva para uma nova tentativa. Viver é fundamentalmente experimentar!
A dança de Cia apresenta-se, pois, como inacabada por estar sempre se construindo. Por mais que cada solista revele uma extrema segurança e objetividade na execução do gesto, sempre existe embutida neste uma flexibilidade disposta a repensar e reformular esse movimento a partir de novos anseios e focos emergentes.

Movimento enquanto construção conjunta

Em se tratando de improvisar com o outro estabelecendo troca de sinergia no ato de dar e receber movimento, se faz necessário antes de qualquer coisa uma profunda intimidade com a pessoa que se propõe a ser parceira da criação. Uma companhia de dança, no caso do Balé Baião que existe há 15 anos com um elenco permanente de 10 anos, dificilmente deixará de construir uma trajetória de convívio e companheirismo perpassando as fronteiras do profissionalismo.
A experiência de grupo permanente, de estar em contato constante com aqueles corpos, de conhecê-los apuradamente, possibilita segurança mesmo diante das incertezas que acompanha qualquer improvisação. Conhecer o parceiro, suas potencialidades e limitações, é garantir uma confortável entrada e saída de movimento, um diálogo claro com a "fala corporal" do outro sem bloqueios físicos e psicológicos.
Os membros da Cia Balé Baião antes de serem parceiros de trabalho são vizinhos, moram na mesma rua e bairro, a maioria se conhece desde a infância e adolescência, são amigos confidentes que se encontram todos os dias, independente de ter ou não aula de dança. Existe entre eles uma cumplicidade que influencia inevitavelmente na criação coletiva do movimento da Cia. A afeição que existe entre todos gera uma dança acolhedora e tolerante, uma ação de escuta e resposta diante do que está sendo perguntado pelo corpo do outro no momento mais oportuno.
A convivência de seis anos tornou perceptíveis as "diferenças" que fazem de cada bailarino da Cia pessoas de personalidades singulares. Paralelo a isso ficou evidente o que há de mais comum entre todos, tanto no que se refere a condições físicas, reações psicológicas e principalmente na qualidade de movimentação. Hoje se percebe claramente na Cia, corpos que buscam conservar suas especificidades, mas que manifestam "sincronias conscientes" de gestos e movimentos que parecem fazer de todos um só corpo e uma só expressão com equidade.
No decorrer dos anos, muitos jogos e exercícios foram se codificando à proporção que foram vivenciados pela Cia. São comandos que apressam o processo de descoberta e construção do movimento de qualquer pessoa que deseje começar a dançar. Fui percebendo que é possível criar uma unidade móvel nos bailarinos a partir da diversidade de corpos e bailados que se apresentam em nossa escola de dança. E o melhor de tudo, é que não precisa de seis ou doze anos para isso; existem formas de adiantar a chamada formação do aluno de dança, no nosso caso, alunos adolescentes entre 14 e 20 anos de idade.
A linguagem desenvolvida por uma companhia de dança é sua verdade exclusiva. O Balé Baião consegue hoje repassar sua verdade não somente pelos espetáculos que produz, mas, sobretudo, através do sistema de ensino iniciado em julho de 2004 na escola que fundou. Adolescentes que nunca pensaram em dançar e outros que sempre quiseram isso, mas não sabiam como começar, estão criando individualmente e em grupo a dança contemporânea de Itapipoca sob orientação dos bailarinos da Cia. Os professores de dança se utilizam de exercícios próprios do Balé Baião nas aulas de consciência e expressão do corpo, contato-improvisação e composição coreográfica.
A dança do Balé Baião, algo que antes parecia impossível de ser executada por outras pessoas, está sendo vivenciada com vigor por novas gerações de bailarinos, cúmplices de uma dança que antes de tudo passou a significar agrupamento, integração de pessoas que querem produzir profissionalmente nutridas pela paixão, pela vida em grupo. Não dá para compreender dança coletiva ou criação conjunta de movimento corporal se existe discórdia e inimizade entre bailarinos de uma mesma companhia. A dança e o corpo não mentem jamais... É fundamental que o "bailarino tal" esteja muito bem com todo o "corpo de baile" para que consiga ser pleno na execução de seu movimento, e nisso possa ser um só corpo com os outros na sincronia das diferenças. Antes do ensino da dança é necessária a fomentação de uma consciência de grupo, de vivências que valorizem a construção de um senso humanitário centrado na tolerância e na cumplicidade.

Do Particular para o conjunto

Não existem "receitas" ou exercícios padrões que irão "moldar" um bailarino. Depois que passei a conhecer jogos de contato-improvisação, pude entender que podia fundir intuição e técnica para dirigir minha dança particular e conseqüentemente para preparar tecnicamente o corpo de baile da Cia Balé Baião. Logo após alguns anos, repetindo os mesmos exercícios de criação de movimento repassados no Colégio de Dança do Ceará, comecei a desenvolver exercícios próprios que vieram corresponder às atuais necessidades estéticas da Companhia. São propostas de vivências que podem contribuir com algumas etapas básicas de formação do bailarino-criador-intérprete, tais como:

• 1a etapa: Conscientização do corpo e de sua expressividade;
• 2a etapa: Níveis corporais (planos verticais e horizontais);
• 3a etapa: Tempo do Movimento;
• 4a etapa: Direções (paralelismos e oposições);
• 5a etapa: Contenção e expansão do corpo no espaço;
• 6a etapa: Estados corporais: o cênico na imobilidade;
• 7a etapa: Sincronia e quebra de sincronia;
• 8a etapa: Interação com objetos cênicos;
• 9a etapa: Interação com outros bailarinos:
Ø    Sem olhar e sem toque
Ø    Com olhar e sem toque
Ø    Com olhar e com toque
Ø    Conduções pelo contato direto e indireto
Ø    Divisão de peso
Ø    Aproximações e distanciamentos
Ø    Sustentações
• 10a etapa: Composição poética e filosófica de dança;
                           Da presença à ausência de movimento
Entendo que a primeira compreensão de dança do bailarino é intuitiva. Para que haja autonomia criativa do intérprete, é necessário que ele tenha autoconhecimento de seu corpo antecedendo a qualquer aprendizado acadêmico.
Uma opção que muito pode contribuir nesse processo é tomar paralelo o exercício do ensino de técnicas sistemáticas de dança, principalmente se a turma é formada por adolescentes. Estes precisam de uma dinamização que apresse o processo de construção da dança almejada, afinal, práticas de dança deveriam ser iniciadas na infância trabalhando principalmente a espontaneidade da criança. São raras as escolas de dança no interior do estado; no geral, os adolescentes precisam "correr atrás" para recuperar o tempo perdido. Itapipoca, Trairí, Paracuru, Paraipaba, Tejuçuoca e Itapajé (Vale do Curu e Litoral Oeste do estado) conhecem muito bem essa realidade.
A Cia Balé Baião quer suscitar em sua escola bailarinos que tenham autonomia e personalidade no dançar. Sabe-se que somente depois de alguns anos de experiência com dança é que se chega a tal medida, porém, já são visíveis casos de adolescentes da Escola Balé Baião que pela tendência de criar estão surpreendendo com trabalhos autorais produzidos em pouco tempo de experiência, apresentando precocemente consistência de movimento e de direção coreográfica. Constatei que o alicerce de tudo isso é a consciência do corpo e da expressividade que esses adolescentes estão desenvolvendo nas aulas de criação particular do movimento, somados às aulas de Balé Clássico e Dança Moderna. Nisso se ganha maior amplitude de possibilidades corporais.
As aulas de conscientização do corpo partem das seguintes propostas de vivências:
• Ausência total de movimento do corpo seja no chão ou em pé (trabalho com as duas possibilidades);
• Ampliação do olhar através de direcionamento para o foco da frente, focos laterais, cima, baixo e costas. Fechar olhos e visualizar uma cor (a primeira que vier);
• Respiração ativada somente pelo nariz, somente pela boca, integrando nariz e boca, prender e liberar fôlego, respirar por todos os poros, normalizar;
• Percepção do corpo sem movimento (visualização) e ou com movimentação crescente de todas as partes, dos pés até a cabeça e ou da cabeça aos pés, da periferia ao centro do corpo e do centro à periferia. Esses trabalhos podem ser realizados com o corpo deitado ou de pé. Se o corpo está no chão, a movimentação deve ser horizontal, tudo pesará e se arrastará sem elevação de periféricos (braços, pernas, cabeça) e nem centro do corpo (tronco). Trazer à tona a lei da gravidade.
    Se o corpo está de pé, explorar direções paralelas e opostas do movimento em sustentações e declínios dos periféricos, contrações e descontrações no centro.
• Locomoções a partir de pequenos e grandes apoios presentes em todo o corpo. Elevação de periféricos e centro se necessário (verticalizações de braços, pernas, bacia);
• Utilização de níveis corporais:
Ø  Corpo deitado: Busca do lado direito e esquerdo, rolamento para troca de lado, elevação do tronco usando os braços como apoio de sustentação (cambrê), utilização de todos os possíveis apoios e ísquios para  sentar, apoio somente no bumbum para elevar periféricos (equilibrar e desequilibrar), utilizar-se de quatro apoios (braços e pernas) e de dois apoios (pernas com flexão de joelhos e tronco caído), desenrolar e enrolar o tronco de baixo para cima, de cima para baixo, pelos lados direito e esquerdo, braços ativados pelos cotovelos em ondulação, elevação e declínio, lançamentos e "enganchos", um braço congela e o outro continua a se mover, oposições e paralelismos, cabeça e tronco acompanhando ou não a expansão e contenção dos braços. Ocupação do espaço pela condução dos periféricos e centro do corpo. Equilíbrios, desequilíbrios, giros, saltos e rolamentos de todo o corpo em interação com o espaço. Contenção decrescente do movimento até chegar a pulsações visíveis e invisíveis; estado de dança na imobilidade.
Ø  Corpo de pé: Cada parte do corpo move-se a partir das necessidades momentâneas, começando pela cabeça e encerrando nos pés. Após tal parte se movimentar que haja uma pausa para que a parte vizinha comece a mexer. Depois de todas as partes trabalhadas com suas respectivas pausas, inicia-se uma emenda de movimentação livre onde cada parte do corpo vai provocar movimento na sua parte vizinha integrando cabeça, tronco e membros. Escolha de partes do corpo que vão congelar em planos opostos, sejam verticais ou horizontais, enquanto que as outras partes se movimentarão em integração ou não a elas. Enganchos de movimento que provoquem expansões; ocupações do espaço mínimo e do máximo; paradas bruscas e paradas decrescentes do movimento (máximo ao mínimo) e o inverso; pulsações visíveis e invisíveis: estado de dança na imobilidade (paralisação com pulsações discretas).

Da Sincronia à Quebra
Hoje acredito que a dança precisa nascer em plena apresentação. Ela é fecundada em aula pela prática permanente de técnicas sistemáticas, porém, só ganha corpo na libertação do gesto aos olhos de todos, nos palcos da vida.
A dança casual ou o movimento que surge em coincidência com outro movimento de outro bailarino, e que por acaso cria uma harmonia plástica nos convencendo de que aquilo foi ensaiado e não uma improvisação é o que chamo de sincronia quebrada ou diálogos improvisados.
A partir de agosto de 2004 venho catalogando exercícios que possibilitam o encontro e o desencontro proposital com essa sincronia. Parto sempre da idéia de que é preciso antes de tudo uma liberação dirigida do movimento expressivo. Sempre procuro fragmentar o máximo possível as possibilidades de mobilização do corpo do bailarino-criador para que ele contemple de forma processual as suas descobertas específicas e sobretudo suas dificuldades naturais, sendo impulsionado a investigar e construir sua performance à luz de suas facilidades e desafios. Mostro em seguida algumas etapas que trabalham essas perspectivas:

Variações e releituras
• Repasse de uma variação ou frase coreográfica que valorize o que pretendo explorar de específico naquela aula. Ex: braços em nível alto, contato com o chão, movimentos do cotidiano, outros.
Em seguida a variação é executada em tempos diferentes (calmaria, explosão...), em novas marcações no espaço (bailarinos em círculo, direções opostas, níveis diversos do corpo...), minimizando e maximizando a movimentação.
Depois, ocupando todos os espaços da sala em direções variadas, os bailarinos serão convidados a fazer releituras particulares da variação, criando novos traços espaciais, movimentos e gestos próprios, sem fugir da matriz inicial. A idéia é que ele possa usar a coreografia repassada como base para criar uma nova coreografia, mas que conserve sua essência (sua idéia central), mantenha sua velocidade, seu fluxo, direções, níveis e focos. Após repetidas tentativas de releitura, todos os bailarinos serão dirigidos a expôr suas performances em três etapas:
1.    Cada um mostra sua releitura para todos apreciarem;
2.    Todos mostram suas performances ao mesmo tempo para que perceba-se em meio às diferenças onde podem estar as sincronias;
3.    O professor direciona a turma para que abram um círculo. No centro os bailarinos mostrarão em duplas suas releituras para que se perceba com mais profundidade onde estão os contrastes, sincronias, encontros e desencontros casuais. A partir daí o professor pode explorar novos comandos para que as duplas estabeleçam diálogos criativos, tendo como base seus solos: trabalhar diferentes tempos, velocidades, enquanto um dos bailarinos congela o outro move-se, inversão de papeis, dentre outras possibilidades de comandos que podem surgir.

  Matrizes ou Estados corporais
• Definir uma posição corporal em que todos devem ficar. Essa posição não deve ser "petrificada" como uma estátua; precisa de respiração natural e de pulsações mínimas. Cada bailarino-criador começa a improvisar partindo dos periféricos de forma econômica e tranqüila, avançando progressivamente com a liberação de movimento. Ao mesmo tempo em que se foge da matriz (posição-base) retorna-se a ela como um refrão a ser repetido, deixando sempre novas possibilidades de movimento ganharem forma no espaço mínimo dado pela matriz. À proporção que há uma evolução do movimento, novas matrizes ou posições-base podem surgir na tentativa de valorizar outros níveis corporais. O bailarino criador fica transitando entre uma matriz e outra (três no máximo) desenvolvendo percursos conscientes entre elas. De três retorna-se a duas matrizes, de duas a uma e nela finda-se o jogo do jeito que foi iniciado.

Seguindo o outro por caminhos opostos
• A idéia é que haja um encontro e um desencontro com a variação (coreografia) dançada pelo parceiro. Enquanto “seguidor ativo” percebo o que o outro está me dando de movimento e tento repeti-lo de forma pessoal, estando e ao mesmo tempo não estando em sincronia com a coreografia dada. De forma súbita, o bailarino que dava movimento pra mim, agora tenta me acompanhar da mesma maneira que fiz antes com ele. Tendo mais bailarinos no jogo, troca-se de parceiro o tempo inteiro, todos assumindo os papéis de dar e receber movimento sendo ativos e receptores ao mesmo tempo. O exercício pede que não haja troca de olhar entre bailarinos para que a visão aconteça discretamente por outras vias e nisso se desenvolva um olhar indireto, uma visão de cena que acontece via percepção sensitiva do outro.
Não tocar no parceiro também é outro comando que suscita uma busca a mais dos bailarinos nesse jogo. Criam-se outros fios de ligação que não são palpáveis, como se cada bailarino permanecesse no solo de seu mundo particular e rompesse com ele penetrando no mundo do parceiro. Em seguida entra o olhar, o toque diversificado, conduções, sustentações, sempre estabelecendo aproximações e fugas do parceiro.

Desenhos Espaciais
Encontros fotográficos:
A meta desse trabalho é criar imagens corporais no espaço mínimo e máximo, a partir de ligações diretas e indiretas entre os corpos dos bailarinos.
A utilização dos periféricos (braços, pernas...) acontecerá por necessidade de locomoção, ocupação e desocupação dos espaços e não por “enfeite” desnecessário. Será fundamental que o corpo seja usado em sua totalidade, porém, sem recorrer a movimentos artificiais que geralmente surgem em improvisações inconscientes.
Os bailarinos procurarão uns aos outros tentando ficar do lado do parceiro, na frente, atrás, de costas, apenas para ficar perto do outro. Para achar um corpo é necessário que haja locomoções correndo ou utilizando-se de apoios no chão. Algumas matrizes podem ser adotadas para funcionarem como ponto final do movimento. O ato de correr ou de se locomover pelo chão será adotado como movimentação codificada do jogo; para ficar perto de alguém em pé ou deitado serão "pontos finais" das frases ou “matrizes” que sempre surgirão para criar sincronia nas quebras.
Após congelar em uma matriz, o bailarino decide para onde ir, de que forma se locomoverá e de que maneira vai parar ao lado do outro para recomeçar tudo novamente, de forma crescente e em seguida decrescente. Nesse exercício, desenhos inesperados são construídos, tais como quadrados, círculos, asteriscos, filas, letras, (S, L, T ...), dentre outros.
Para que o bailarino consiga realizar esse jogo é básico que ele tenha noção de desenho, decisão objetiva na hora de se locomover para mudar de ângulo, agilidade, visão total do que está acontecendo no espaço, habilidade com o chão (apoios, amortecedores...) e sem dúvida, entrosamento com os parceiros de dança.
As cinco ações naturais
Os bailarinos deverão estar espalhados no espaço da sala em direções diferenciadas. Todos deverão vivenciar ao mesmo tempo as cinco ações ou atitudes mais comuns dos seres humanos: andar, correr, parar, sentar e deitar. Cada um deverá compor formas variadas de executar cada ação em tempo determinado pelo professor. Na próxima etapa os bailarinos terão autonomia para escolher as ações que desejar para executar, uma após outra, em tempos e espaços diversos, desenvolvendo uma partitura harmônica a partir de escolhas. Todos estarão em cena executando ações diferentes que subitamente se harmonizarão conforme escolhas comuns que sem planejamento serão feitas. De repente três bailarinos poderão sentar ao mesmo tempo, enquanto que dois estarão correndo e quatro estarão deitando no chão, entre outros exemplos. A seguir, o professor conduzirá os bailarinos para a vivencia das cinco ações em quatro momentos específicos:
  1. As cinco ações serão vividas a partir de temas relacionados a sensações, exemplo: correr, deitar, sentar, parar e andar com o medo, com o sentimento de solidão, de espera, com desesperança, com determinação e alegria, dentre outros temas, sempre mantendo a economia dos gestos, a intensidade do movimento e a crença na verdade que estará se materializando no corpo.
  2. O bailarino vivenciará as cinco ações em interação com os outros bailarinos através da aproximação de alguém e por conseqüência do contato com alguém. Exemplo: três bailarinos sentaram perto um do outro ao mesmo tempo por decisão consciente. Em seguida um deles encosta a cabeça no ombro do vizinho, enquanto que o outro o abraça. Resultado: imagem de três pessoas se amparando com ternura, dentre outros exemplos.
  3. Os bailarinos vivenciarão as cinco ações em interação consciente uns com os outros, a partir de temas lançados pelo professor: medo, solidão, fúria, indiferença, solidariedade, amparo, compaixão, dentre outros.
  4. Os bailarinos vivenciarão dentro do desenho de um quadrado com cinco pontos de localização, as cinco ações com os sentimentos que optarem, sempre trocando de lugar e transitando entre uma pessoa e outra, Os pontos deverão ser quatro nas extremidades e um ponto central. Em cada ponto de acordo com as trocas de lugares podem ter duas pessoas, uma ou todas ao mesmo tempo. Não haverá limite de pessoas para cada ponto, como também não será erro se determinado lugar ficar vazio (Esse vácuo pode ser extremamente cênico). Enquanto os bailarinos trocam de lugar, mudam ações, velocidades, ou encontram de súbito alguém e se acoplam, serão automaticamente formadas “imagens cênicas” que ao mesmo tempo petrificarão nas pausas e se movimentarão com intensidades diversificadas, gerando infinitas opções de “olhares” na platéia.
Interação com objetos
O objeto escolhido para ser trabalhado em um espetáculo de dança deixa de ser meramente utilitário para tornar-se objeto de cena, ou seja, parte integrante do conflito e da estética do trabalho exposto.
É preciso que o bailarino-criador tenha coerência na escolha do objeto cênico que vai utilizar em sua performance. Ele deve ser na dança extensão poética do movimento corporal, ampliação, prolongamento da presença cênica do bailarino. O objeto escolhido precisa corresponder aos anseios do coreógrafo no que se refere à concepção ou à idéia central do trabalho que quer desenvolver. De repente será preciso apenas um objeto cênico e nada mais. Lidar com o necessário em cena é garantir um trabalho essencialmente poético, despojado e repleto de vácuos a serem preenchidos pela platéia, que passa a ser dona do trabalho coreográfico à proporção que ele é apresentado ou ofertado no palco.
Se existe objeto em cena é necessário estudar e compor o seu começo, meio e fim, definir o objetivo concreto que ele terá em cena, em que momento vai aparecer, garantir sua aparição discreta e seu desaparecimento súbito, que conflito cênico ou que "plástica corporal" ele ocasionará no acoplamento com os bailarinos, com o espaço da cena e da platéia que o percebe e até mesmo toca-o. Outra questão fundamental nesse trabalho com objetos é possibilitar que não haja agressão ou violência dos mesmos quando usados na tentativa de forçá-los a serem outra coisa. Os objetos são o que são e devem ser “usados” da maneira que é possível usá-los. A partir do momento que me utilizo do objeto com a pretensão de demonstrar “domínio de malabares” não estou fazendo dança, e sim artes circenses.
Procurei dividir a pesquisa de interação com objetos em duas etapas básicas:
Objeto Cênico em solo
Ø Reconhecimento do objeto - O bailarino-pesquisador deve estudar pelo olho e pelo toque a estrutura, o tamanho, o peso, as possíveis entradas e saídas que o objeto apresenta, bem como suas fragilidades e resistência.
Ø Mudança de plano do objeto + mudança de plano do corpo - O objeto deverá ser colocado em outras posições (deitado, de lado, de cabeça para baixo...) enquanto que o bailarino tentará imitar com seu corpo as mesmas, se aproximando e se distanciando dele, criando movimentos de ligação que favoreçam a troca de posição do objeto e conseqüentemente entre o fluxo de movimento em ocupação do espaço.
Ø Entrar e sair do objeto - O bailarino poderá ir ao encontro do objeto para encaixar-se nele ou trará o objeto para seu corpo onde se acoplará. A cada entrada no objeto (sentar, ficar de pé, por cima dele, colocá-lo na cabeça, prendê-lo entre cabeça e ombro etc.) é importante fixar a imagem congelando. Pouco a pouco, dentro dessa imagem desenhada (matriz), devem-se liberar pequenos e grandes movimentos, sempre a partir do limite e das possibilidades que o objeto oferece. O momento de êxtase do jogo é quando o fluxo de movimento rompe com as imagens congeladas proporcionando continuidade, abandonos e retornos ao objeto em ocupação consciente do espaço.
Ø Desenhar o espaço com objetos - cada bailarino vai precisar estar vestido com uma blusa grande de algodão. Pegando com as duas mãos a parte inferior da blusa, cria-se um depósito onde ficarão guardados objetos pequenos (padronizar: caixas de fósforos, ou búzios, miniaturas de brinquedo, batons, etc). O jogo começa com a retirada tranqüila desses objetos da blusa. O bailarino vai espalhar esses objetos em todo o espaço preenchendo todas as lacunas. No segundo momento ele recolherá esses objetos de forma dinâmica levando-os novamente para o depósito da blusa. Tanto o ato de espalhar como o de guardar os objetos deve provocar nos bailarinos um ágil trabalho de chão (apoios e amortecedores dos periféricos, articulações, giros, saltos, equilíbrios e desequilíbrios) diversificando o tempo, o tamanho, a força e o peso do movimento desenvolvido.

Objeto Cênico em grupo
Ø  Formação de desenhos espaciais com objetos:
o grupo de bailarinos vai montar desenhos diversos no chão a partir da interação dos objetos. Para a formação desses desenhos, os bailarinos terão que encontrar uma dinâmica de locomoção no espaço utilizando-se dos níveis baixo, médio e alto, sempre buscando ter visão do "todo" e das "partes" para que não haja choques e colisões entre corpos e objetos. O desenho criado será resultado da inspiração e escolha do bailarino diante do objeto que foi deixado no chão. Ele deverá traçar o próximo risco do desenho com seu objeto e o bailarino seguindo fará o mesmo. A cada desenho construído o grupo de bailarinos deverá congelar em posições corporais diversas contemplando a obra. Subitamente, um dos bailarinos resolverá tirar seu objeto do chão quebrando com o desenho para construir outro. Os bailarinos escolherão acompanhá-lo ou não em novos trajetos, novos desenhos com objetos e novos quadros vivos com a mobilidade e imobilidade dos corpos em ação.
Ø  Entregas e recebimentos de objetos:
Esse trabalho deverá ser feito inicialmente em duplas. Os dois bailarinos estarão com objetos iguais (bacias, bancos etc) e próximos um do outro (de lado, frente, costas...). A idéia é que os bailarinos se movam em interação com os objetos e em seguida encontrem um momento oportuno para trocá-los. Esse momento de troca terá que ser recheado de pausas sinalizando e espera pelo outro, e de avanços decididos no intuito de garantir a entrega segura dos objetos. Esse exercício pode ser desenvolvido também com a utilização de apenas um objeto, seguindo a mesma seqüência de entregas e recebimentos. O bailarino que estiver com o objeto estará interagindo com ele, enquanto que o outro se moverá livremente. À proporção que vão estabelecendo a inversão de papéis, cria-se uma codificação de movimentos nos corpos pelo contato com o objeto. O movimento manifestado pelos dois será resultado dessa repetição e dessa interação simultânea.
O segundo momento desse trabalho é juntar um grupo maior de bailarinos para desenvolver a trajetória anterior. Desta vez, a interação e a agilidade deverão ser dobradas para que haja harmonia e sincronia grupal na execução das trocas de objeto e nas locomoções pelo espaço. Em primeiro plano tudo deve ser feito com calma para que se estudem caminhos e estratégias de troca. Conseqüentemente a velocidade deve se acentuar dentro de um fluxo contínuo até se construir um clímax e um retorno a calmaria.
Eis alguns objetos cênicos utilizados em aula pela Cia Balé Baião e por sua escola de dança:
Ø Bacias, lençóis, bastões, cadeiras, bancos, pedras, búzios, malas, imagens de santos populares, giz, elásticos, bolas, sinos, espelhos, chinelos, roupas, lamparinas, brinquedos, DVDs, folhas de papel ofício, caixas de fósforos, travesseiros, esteiras, cordas, barbante, sacos de algodão, miniaturas dentre outros.

Composição Poética e Filosófica da Dança
Esquematizar um roteiro coreográfico para a dança desenvolvida no Balé Baião é um exercício de leitura que principia no entendimento do corpo e do movimento que se quer trabalhar dentro do espetáculo (linguagem corporal), estende-se no aprofundamento filosófico e poético desse corpo e desse movimento (concepção do tema ou assunto norteador), e tem sua culminância na fusão desses dois aspectos, seguindo pelo processo de experimentação e definição de cenas em constante tentativa de descoberta coreográfica que requer repetição, flexibilidade e, sobretudo, generosidade dos bailarinos-criadores  no sentido de entrega ao trabalho, assumindo principalmente as dificuldades de adesão às técnicas repassadas. Generosidade, entrega e adesão são exercícios que sempre exigem do aluno-bailarino determinação,  paciência e perseverança.
Independente da linguagem a se utilizar ou do tema específico a ser discutido no espetáculo, o Balé Baião sempre quer falar do momento presente da humanidade, dos conflitos, ânsias, buscas e achados do corpo contemporâneo, tendo como pano de fundo a vida e a diversidade de contextos que fazem o planeta terra.
Esse pensamento acaba me deixando à vontade para criar sem prender-me a "receitas acabadas" de composição, bem como me desprende de temas de cunhos diversos. Preciso estar livre e lúcido para dançar sempre de outro jeito, para falar de outra coisa, para não falar de nada, para estar em outro lugar, para ser outro sempre. Creio que a lógica da vida (que antecede à dança) é buscar e achar incessantemente; no dia em que tudo tiver sido achado e não existir mais buscas, a vida deixará de pulsar, o corpo não precisará mais caminhar e tão pouco dançar.
Em resumo, eis algumas pistas que facilitam o processo de composição coreográfica:
Ø  Definição do que se quer falar (ideia central) e da linha de movimentação corporal (estética do espetáculo);
Ø  Aprofundamento teórico da idéia central do espetáculo (livros, vídeos, entrevistas etc.);
Ø  Pesquisa de campo (visitações, registros em fotografia e vídeo, questionários...);
Ø  Em estúdio: Experimentações e confecção das cenas ou das partes que farão o roteiro do espetáculo (busca de comandos que capturem os corpos nas cenas desejadas, marcações sincronizadas e livres para improvisar,  utilização de objetos cênicos...);
Ø  Definição da trilha sonora apropriada para cada cena do espetáculo;
Ø  Definição de figurinos apropriados (de preferência que valorizem as diferenças de cada corpo do elenco, sem padronização de modelo);
Ø  Ensaios fechados e interativos (avaliações abertas);

Gerson Moreno

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