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Pleiteando
dramaturgias do tempo presente
A inquietude de quem cria no
decorrer da história ganha novas feições e configurações a cada crise nova
vivenciada pelas pessoas-sociedades-unidades-coletivos. Atrevo-me a dizer que Criar é antes de tudo reler
contextos, plastificar poéticas cotidianas, estabelecer relações diretas ou
indiretas com o público que se dispõe apreciar a obra exposta, instigar
reflexões à cerca do homem contemporâneo, de suas angústias e ânsias. Mas
criar o quê e com que propósito? Criar sozinho ou em parceria? Criar sempre ou
em períodos necessários? Criar por satisfação pessoal ou para dividir? Criar
pela necessidade de legitimar pesquisas e processos ou pela espera de um
aplauso final? Confesso que no momento estou muito atento a possibilidades de
construção (sozinho ou coletivamente) onde seja intensa a experiência dialógica
do aprender, empreender, reaprender e, sobretudo a prática generosa do
acolhimento, onde posso me disponibilizar à escuta dos sussurros lúcidos e
eficazes de quem chega para colaborar na gestação de minha-nossa obra. Pensar
no ato criativo como pressuposto de vivencias estéticas muito mais que na
produção de um resultado exigido a ser apresentado me dá condições de compor
espetáculos anti-espetaculares que poderão ou não sair da sala de ensaio, mas
que inevitavelmente se tornarão documentos ou registros de descobertas
conjuntas, materializações de ânsias estéticas, plásticas de anseios abstratos.
Independente da obra ir para o palco ela existe para nós, codificou-se no nosso
pensar-fazer dança. Mais cedo ou mais tarde esse documento se expressará, mesmo
que por outras vias, mesmo tendo que ser destruído para dar lugar a um outro
espetáculo, a um outro documento: rotina de quem escreve e erra, papel
amassado, jogado no lixo... recomeços, mas o texto é o mesmo, está na ponta do
lápis.
Muito baseado em experiências de
criação desenvolvidas por artistas da dança, (principalmente por coreógrafos
que trabalham a partir de projetos de pesquisa onde transitam corpo,
improvisação e performance) e sobretudo a partir de minha vivência enquanto
criador junto a “corpos de bailarinos” e “não-bailarinos” com a Cia Balé Baião
de Itapipoca, consegui em linhas gerais rascunhar um percurso sistematizado do
que podemos chamar “pontuações sobre o ato de criar na dança”:
·
Colocar-se em estado de
acolhimento-percepção-adesão a contextos distintos ou apelos instantâneos.
Deixar-se afetar;
·
Experimentar sem grandes pretensões a partir de
roteiros de vivências que poderão ser sistematizados ou aleatórios. Suscitar a
sugestão voluntária a fim de proporcionar processos colaborativos, tanto no
âmbito individual como no coletivo;
·
Organizar-desorganizar-organizar os
desenhos-imagens que sintetizarão as descobertas e edificações estéticas
configuradas no experimento-estudo-corpo;
·
Compartilhar a obra pela necessidade de
estabelecer relações-afetações com públicos distintos. Desfazer-se da obra
entregando-a ao outro;
·
Estar disponível para refazer-resignificar a
obra, quando surgir necessidade de potencializar sua plástica e poesia. Receber
de volta a obra criada com todos os “atravessamentos” que fizeram nascer
questões de ordem crítica e nisso mapear maneiras outras de ser, estar e
dialogar com o trabalho criado-recriado.
...
Dramaturgias do corpo
comum
O exercício da “escuta atenta”
vem me possibilitando fazer paralelos entre conceitos recentes de arte
contemporânea com minha prática enquanto educador que cria, artista que cria
consigo mesmo, artista que cria com a Cia Balé Baião e finalmente artista que
cria com pessoas que nunca criaram ou que nunca dançaram, paralelos que me
trazem questões bem particulares a refletir.
Venho perseguindo a ideia de
pesquisar movimento expressivo e desenvolver material coreográfico com corpos
ausentes de adestramentos técnicos em dança contemporânea, especificamente com
adolescentes de bairros periféricos da cidade que trazem impressos em seus
corpos o futebol, a capoeira e o hip hop como práticas físicas rotineiras,
operários que trabalham em empresas-fábricas acarretados de memórias corporais
enfadonhas e porque não dizer “dolorosas memórias” provindas do contato
repetitivo com máquinas e sapatos, e recentemente com professores do ensino
regular de uma escola profissionalizante de Itapipoca, corpos até então
travados pela rotina frenética de sala de aula, frustrados pelas abdicações
pessoais que a vida e o mercado os obrigaram a ter em nome da educação e do
serviço exclusivo, enfim, corpos inéditos no panorama dança contemporânea de Itapipoca,
cidade do interior que até então conhece e reconhece apenas o que é
desenvolvido coreograficamente pela Cia Balé Baião.
Me interessa enquanto criador a
poesia que reside na ação e na imobilidade do corpo enquanto organicidade,
corpo enquanto memória sensorial e social. Minha obra se compõe a partir de uma
perspectiva de construção cênica onde seja possível a plastificação de corpos
inacabados (ideia de falta, vácuo, de vazio necessário, de começos sem meios ou
finais), fragilizados (pelo “deixar a desejar” em força, em tônus muscular ou
resistência física. Que sejam assumidos os limites e as carências corporais do
criador-intérprete como potenciais cênicos a ser utilizados) e intensos (nas
suas escolhas instantâneas, no ser e fazer aqui e agora pelo improviso casual
ou direcionado. Que a verdade cênica seja medida nas opções de duração, tempo,
espaço, peso, fluxo e força feitas pelo criador-intérprete no fazer-se cena
pelo corpo).
Venho percebendo cada vez mais
que a ação física por si própria está acarretada de “dramaturgias da hora”, de
“poéticas súbitas” que testemunham o tempo real dos acontecimentos, nisso não
se enquadra roteiros fechados com reações pré-meditadas ou previsíveis, tão
pouco histórias lineares de cunho didático. Os fragmentos me interessam bem
mais que as totalidades ou inteirezas das coisas. “Estar e fazer” no momento
súbito é inevitavelmente compor verdades cênicas alicerçadas no “risco” e na
“salvação”, na pergunta e na resposta dada no instante a se construir de “corpo
presente”, em tempo real. Nesse sentido o Conflito Cênico poderá se configurar
a partir de Circuitos Corporais onde contato corpo-a-corpo e corpo-espaço
garantirão olhares, tatos, escutas e fragrâncias poéticas que atravessarão de
distintas formas. Provocar maneiras de ver e ler o que se expõe garante a
edificação de Plurais Dramaturgias no “outro atravessado”, no
público-compositor-dramaturgo.
O corpo do criador não-bailarino,
por não trazer máculas técnicas de “dança padrão”, consegue sob direção de um
olhar-comando do dramaturgo, construir uma performance bruta, descomprometida
com as “armaduras” do “belo dançarino” ou do “belo movimento” em detrimento do
manifesto político, do refazer-se em cena para gerar fluxos de expressão.
Interessa para o corpo dançante-performático de um “operário dançarino” o
recondicionamento ou reconfiguração de sua condição de “corpo impossibilitado”
para se firmar como “corpo possível”, de “corpo reprodutor” para “corpo
criador-criação”, de “corpo proletariado, mão-de-obra barata” para “corpo
emancipado”, autônomo, corpo pensante e pulsante de consciência-atitude
transformadora. Estar em cena com esse corpo social já é a dramaturgia de um
contexto concreto se materializando por si próprio. Não há necessidades de
figurinos, trilha sonora, cenário e até mesmo de movimento elaborado. Basta que
ele esteja e seja, que ele olhe-se e olhe para quem lhe olha, basta que ele
espere às leituras de sua imobilidade despojada, basta que ele deixe que sejam
vistos-devorados sua coluna curva, enrolada de tanto ficar em posições
incorretas frente às máquinas, suas mãos ásperas e calejadas, resultado das
repetitivas fricções, seus pés “achatados” e longos, ausentes de alongamento.
Basta que ele seja o que for palpável de ser naquele espaço com aquele público.
Ver-debruçar-se desse “corpo
comum” na cena-berlinda é ver-se nesse corpo que também sou eu, que sintetiza
um pouco ou muito de mim, materialização das fragilidades e potências que
residem no “ser comum” de um “cotidiano comum”, anti-espetacular.
Identificar-me ou sentir-me parte desse “todo cênico” por me ver “apresentado”
e não “representado” pelo corpo do dançarino-operário, torna “incomum” este
lugar, esta habitação, estes corpos que se relacionam, nisso se instala uma
dramaturgia de cunho estético-político, material experimental emergente em
tempos de consumismo e globalização, válvula de escape frente a padronizações
estéticas que ainda se sobrepõem e excluem artistas e obras de grandes
circuitos que querem legitimar a dança como produto mercadológico, muito mais que
agregar o experimental independente.
Conflito Cênico Sensorial
O corpo é um texto à ler-se. A
dança, diferente do teatro clássico, não se faz através de textos aprendidos,
de personagens que transitam dentro de uma história, de diálogos, de começos,
meios e fins. Ela lida (ou deve lidar) com tecidos invisíveis que se
cristalizam dentro de processos de composição de qualidades de presença do
corpo, de ambiências e deslocamentos. Quando se fala em “conflito”se pensa em
“diferenças”, oposições de forças, contradições ou caminhos contrários que irão
se sobrepor sempre com o pretexto de deixar espaços vazios ou vácuos entre
ambos. O “entre” provocado pela divergência de forças é o lugar do deleite, dos
êxtases sensoriais, dos atravessamentos e reflexões, do ver-se dentro, entre ou
distante dessas forças contrárias, do reencontro com substâncias essenciais do
ser, invisibilidade que “deixa-se conhecer” ou revela-se no ato do sentir
sentindo-se, do contemplar além do olho vendo-se e revendo-se, do tátil além do
toque, tocando-se e deixando-se tocar.
Em meio a eloquentes discussões
conceituais a cerca das artes no âmbito da pesquisa e produção contemporânea,
permeia um “sumo” que extrapola termologias acadêmicas: a invenção do sensível
enquanto obra de arte.
O que na verdade interessa é a
potência poética da obra, sua capacidade de afetar e infectar, independente de
ter se configurado dentro das tendências metodológicas, estéticas ou
filosóficas apontadas. O conflito-poético do corpo sempre será antes de tudo o
próprio corpo-sujeito-objeto. Estar e intervir no mundo é a gênese da teoria
por vir. Antes das conclusões escritas e editadas que se firmem práticas de
ordem individual ou coletiva. É
fundamental que o corpo com suas possibilidades e capacidades se veja experimentando
na ânsia de criar “arquiteturas físicas” que dialoguem com os públicos
vigentes. Cada lugar vai aspirar por um corpo específico, cada corpo uma
singular necessidade de dança, cada dança um registro efêmero de perguntas e
respostas que simultaneamente aparecem e se desintegram no
corpo-memória-sentidos, cada público o seu olhar-sedento, sua experiência
particular de relação com o mundo que o cerca e consequentemente sua forma de
ler e reler, de ver-se e sentir-se na obra exposta. Eis o grande apelo da
contemporaneidade: acolher muito mais que negar. Romper com pré-conceitos a
cerca do que pode ou do que deve ser a dança numa perspectiva contemporânea,
vislumbrando sobretudo possibilidades de encontro com os plurais
olhares-anseios que diversificam por sua vez os lugares a se habitar. Em foco
esteja à questão: Dramaturgia a ser construída-descontruída com quem?
Onde?Como? Para quê?
PÁLPEBRAS E
QUEBRANTOS (Gerson Moreno)
Olho de quem me olha
Olhado-devorado em atos-pedaços
Molha-me pálpebra
Chorosas meninas-velhas
Molhado sigo na berlinda-cena
Atravessando tecidos
inquebrantáveis
Linhas-costuras em
panos-trapos-pedaços
Molhado
Partido ao meio
Entre-atravessado
Imóvel fico à espera do anseio de
me mover
Sigo parado, simplesmente
atravessado em flechas-flecheiras
Estraçalhado em pedaços bem
partidos faço-me corpo
Invento-me em presenças
necessárias
Eficazes e desintegradas
presenças
Refaço-me de novo em velho
Dou-me e retiro-me atirando-me no
acaso
Contato em súbitos apelos do
tempo real
Pelos apelos instantâneos
integro-me
Pelos, jamais aparados
Cabelos, nunca cortados
Cabeça de novelos de lã
Salientes cotovelos
Fraturo-me para durar em
intensidades finitas
Quebro-me sem pudor das pálpebras
latentes
Refaço-me de corpo em anticorpo
De dança contra-dança
Desdanço
Retalho-me com emendas de
memórias
Esqueço-me e peço desculpas
Lembro-me
Desenho-me sem riscos
Apago-me para não deixar marcas
nem histórias
Escrevo-me nova-mente em
de-mentes vontades
Repico-me
Colo-me com cuspes e partituras
coreográficas
Componho-me no aqui e agora
Assumo o drama que me persegue
Assumo-me dono dessa dança até
que seja dada
Dou-me
Recolho-te em pálpebras e palmas-meninas
Bandeja na mão
Hora de juntar os cacos
....
..
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