quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Biografia de Gerson Moreno

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Histórias de meninices, militâncias e Pré-danças

Antes de tudo os meus pais... Moradores das serras de nossa cidade. Filhos de agricultores, jovens agricultores... Meu pai (José Américo) brincante de “Dramas Antigos” e Reisado, minha mãe (Maria Socorro) doméstica.

Desceram as serras com suas famílias em busca das prometidas melhorias que a cidade grande poderia oferecer. Meu pai foi morar no Seminário Diocesano para ser Padre, minha mãe também... Para cozinhar pro Bispo. Lá se conheceram... Namoro às escondidas. Resolveram casar... O Bispo muito amigo dos dois lhes deu um terreno. Casaram e me fizeram... Bairro Coqueiro, próximo ao Violete e Cruzeiro, periferia da cidade.

Nasci em Quatro de Julho as 18h30m no antigo hospital de Itapipoca. Primeiro filho!

Diziam que parecia mais com minha mãe e com os parentes dela: moreno, olhos castanhos escuros, cabelos pretos.

Estava com cinco anos de idade... Paredes riscadas: pássaros e igrejas feitos por mim. Todos se admiravam! “Esse menino vai ser desenhista...” Escutei isso durante toda a infância da boca das pessoas. Meu pai fazia desenhos pra eu ver e tinha livros grossos guardados no guarda-roupa. Me fascinava ver meu pai desenhar ali ao vivo: pessoas, bichos... Queria imitá-lo. Os livros guardados eram pra mim misteriosos. Abria escondido o guarda-roupa para ver as figuras... José Américo tinha muito ciúmes deles. Acabei com cada livro pouco a pouco... Queria as fotos, recortei cada uma, colei em algum lugar. No final meu pai sempre entendia. Nada de brigar por causa disso.

Todo final de semana estava no Bairro Picos (Pé de Serra de Itapipoca) para visitar os meus avós, tios e primos maternos. Um paraíso de se ver e degustar! Roçados onde ia plantar e colher com um monte de meninos e meninas, riachos e bicas onde tomava banho e escorregava nas pedras, plantas e árvores diversas onde tirava fruta do pé (só vivia ralado de cair dos cantos)... Barro de louça (argila) era meu brinquedo preferido nos Picos. Vivia a fazer pequenas esculturas de pessoas e santos... Horas e horas a me lambuzar com lama. Tinha muito barro bom nas “grotas”. Só ficava meio frustrado porque não conseguia levar nenhuma das imagens pra casa. Elas sempre quebravam. Tentei secá-las várias vezes, botava no fogareiro... Assim mesmo rachavam. Parecia que não podia tê-las... De vez em quando deixava algumas delas em lugares lindos, sozinhas. Pra mim eram sagradas... Meu pai era também uma grande influência religiosa pra mim, por isso os santos, por isso altares em meio a matos, altares de pedra com imagens de barro. Sempre meu pai me levava a missas... Começaram a dizer que eu iria ser padre. Isso de alguma forma deixava meu pai e os parentes dele (extremamente católicos) muito felizes, como se eu estivesse de alguma forma com a missão de ser o que meu pai não conseguiu. Nunca me senti forçado a isso, mas essa ideia chegava a mim, e eu apreciava isso. As imagens de Santos eram lindas, as mãos delicadas, olhares ternos... Canções que me faziam imaginar o céu. Tudo aquilo me instigava a imaginação. Lembro com carinho de uma cena surreal: Eu, um menininho entre nove e dez anos no calçadão da Catedral, com um caderninho na mão desenhando de lápis o rosto do Padre Bezerra, ele sentado à minha frente numa cadeira a esperar minha obra. Padre Bezerra foi um grande amigo de meu Pai. Já faleceu... Temos uma rua em Itapipoca com o nome dele (homenagem). Há tempos me pedia para desenhar o rosto dele... Nunca tinha feito isso. Só desenhava Santos. Terminado o desenho o agradecimento do Padre, me deu alguns cruzeiros... Quanta felicidade!

Além do fascínio por Santos, por barro e lápis de cor, sempre gostei e brinquei com bonecas. Tinha entre 11 e 13 anos... Muitas bonecas na sala de casa para quem quisesse ver. Meus pais nunca me repreenderam e os próprios vizinhos nunca se meteram nisso. Na época eu achava tudo extremamente “natural”. Não existia na minha cabeça a reflexão ou o juízo de valor par determinar que existissem coisas de menino e coisas de menina. Me interessava ter diversas bonecas, bonecos, bichos, construir cidades com casas de madeira (pegava pedaços de madeira da serraria de meu pai e eu mesmo fazia as casas da cidade). Todo dia eu tinha o horário de montar a cidade e construir uma história. Tinha protagonistas e antagonistas com textos, falas e diálogos. Geralmente terminava a história com uma grande catástrofe que destruía tudo (inspirado em um desenho que vi na TV). Fazia essa cidade na sala, ficava no meio dela... Visitas chegavam, achavam bonito.

Eu tinha uma Tia chamada Lélé nos Picos (Já faleceu). Ela era rezadeira e fazia bonecas de pano como ninguém. Eu era seu principal fã... Sempre ela me fornecia alguma boneca interessante. Todo ano no dia de São Pedro ela organizava um Terço na comunidade. A atração do terço era um cenário que ela fazia na parede de sua casa de taipa repleto de bonecas de pano vestidas de anjo, ao redor da imagem de São Pedro. Pessoas de várias localidades da serra vinham para esse terço tradicionalmente. Eu não tirava os olhos de tudo aquilo... Perfeito pra mim: um santo e bonecas!

Nunca me esqueço de certa vez, época de Natal no bairro que morava, iam distribuir brinquedos para crianças... Fila enorme. Eu estava no meio ansioso... Ansioso para ganhar meu presente: uma boneca. Tinha duas opções de presentes: carrinho para menino e boneca para menina. Na minha cabeça estava certo que eu iria dizer quando chegasse à minha vez que eu queria a boneca e não o carro... Fui vendo que todos os meninos só levavam os carrinhos... Intimidei-me... Levei o carrinho muito triste para casa. Nunca brinquei com ele. Me confortava saber que quando eu chegasse em casa as minhas bonecas estavam me esperando. Algumas delas ganhei de primas, outras de minha Tia Lelé... Cheguei a roubar algumas delas, as mais exóticas. Pra mim elas tinham vida própria, conversavam entre elas quando eu não estava presente... Assistia muitos desenhos da Disney, dormia vendo TV na sala... Me interessava dar vida as bonecas, inventar histórias e mundos. Muitas dessas histórias iam pra os cadernos de desenho e paras revistinhas em quadrinhos que eu mesmo fazia (Tinha coleções imensas de revistas em quadrinhos... meu pai comprava). Aprendi a ler e escrever por causa das revistas em quadrinhos... A professora ajudava, mas as revistas tornavam isso mais prazeroso. Meu pai acompanhava esse processo, por isso sempre me fornecia revistas. Ele era esperto!

A TV também me inspirava a fazer shows em cima de uma mesa velha que ficava no quintal de uma vizinha nossa. Eu juntava várias crianças e ia me apresentar pra elas com imitações de cantores. Em seguida articulava a apresentação de todos... Programação, tempo, pedia aplausos para eles... O local era um quintal imenso, diversos cajueiros, galinhas, porcos, flores, insetos... Hoje somente casas para alugar. Quando me lembro dessa mesa fico pensando que eu era mesmo uma criança pretensiosa.

Meu Pai passou a ser coordenador de pastorais socias da paróquia de nosso bairro (Violete). Ele cantava nas missas, animava grupos de jovens, organizava encontros e reuniões na comunidade, e o melhor de tudo pra mim: se apresentava com peças de teatro. Aquilo me encantava por demais! Foi tanta inspiração que aos 11 anos resolvi ser catequista do bairro. Ia sempre com meu pai que já tinha grande contato e influência na paróquia. Passei a participar de cursos e encontros produzidos pela Pastoral Catequética. Eu era o mais novo. Um menino no meio de adultos. Percebo que de alguma forma isso me fez amadurecer precocemente. Daí em diante passei a ter contato com muitas pessoas, fiz muitas amizades, aprendi a lidar com o ensino, com a partilha de conhecimentos... Aprendi a envolver pessoas, a motivá-las para ações de grupo. E o melhor de tudo, passei a fazer teatro na comunidade. Nesse período (década de 80), as pastorais tinham um compromisso acirrado com o social tendo como base a Teologia da Libertação de Leonardo Boff. As artes eram acolhidas como instrumentos de conscientização, luta e celebração da vida. Me interessava fazer arte para defender a vida e a justiça!

Foi através das pastorais que tive oportunidade de fazer minhas primeiras oficinas de expressão corporal, teatro do oprimido e colagem artística. Lembro como se fosse hoje, eu, garotinho de 16 anos, enviado para viajar sozinho a cidade de Canindé, a fim de participar do Curso de Inverno da ESPAC (Escola da Pastoral Catequética). Foram três idas, sempre em mês de Julho, sempre uma semana fora, tendo aulas de psicologias das idades, dinâmicas de grupo, análise de conjuntura, cultura popular brasileira, Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, composição literária, arte popular... A Igreja era outra! De fato formava para a vida... Foi nesse curso que assisti pela primeira vez a um espetáculo que unia teatro, dança e canto... Foi nesse curso que resolvi apresentar pela primeira vez um solo performático (não chamava assim...). Dizia ser uma expressão corporal... Minha inspiração era a cultura afro-brasileira (era 1988: ano dos 100 anos de libertação da escravatura no país). O solo era ao som de uma canção que trazia trechos do Navio Negreiro de Castro Alves. Desde então não parei mais... Interessava-me mostrar para as pessoas isso que eu gostava de fazer. Sentia-me pleno em me utilizar de meu corpo para fazer um tributo vivo a Raça Negra. Desde então promovi na Igreja do Violete várias coreografias afro dentro das missas... Dançava na Igreja ao som de tambores, levando oferendas a Zumbi dos Palmares, ao Deus de todas as cores e etnias, a Oxalá! Enquanto isso beatas a me perseguir, a nos perseguir, afinal já éramos um grupo de dança. Edileusa (minha prima) que até hoje está conosco na Cia Balé Baião foi uma das companheiras de dança nessa época dentre tantos outros.

Da Igreja passei a atuar em movimentos sociais e pastorais sócias, entre eles a Pastoral Urbana (que agregava representantes de várias entidades dos bairros da cidade para discutir desafios urbanos e tentar no coletivo resolvê-los), a Pastoral de Adolescentes e Crianças vinculada ao Movimento Nacional de Crianças e Adolescentes (onde o foco era a luta em defesa dos direitos das crianças e adolescentes), a Pastoral Operária (que agregava associações, sindicatos e operários das fábricas de Itapipoca para discutirem e lutarem por seus direitos) e o Movimento de Artistas da Caminhada (MARCA) articulado por Zé Vicente (cantor e compositor de renome nacional). O “MARCA” agregava grupos de dança e teatro que tinham em comum a produção de trabalhos artísticos voltados à “Caminhada”, ou seja, a defesa e luta pela cidadania e direitos humanos. Esse movimento ganhou inclusive proporções estaduais. Todo ano passamos a fazer um Encontro chamado “Aconchegão de arte-vida” que integrava grupos artísticos de todo o Litoral Oeste e Vale do Curu.

Zé Vicente foi a primeira pessoa que me disse que eu era artista, que eu deveria me assumir como artista... Até então me sentia bem mais um militante ou liderança comunitária que tinha dotes artísticos. Passei a me assumir artista da caminhada!

Por meio da Pastoral de Adolescentes e Crianças e do Movimento de Artistas da Caminhada iniciei vínculos afetivos com pessoas que até hoje fazem acontecer em nossa região ações pontuais em arte, especialmente em dança, entre eles o Moésio de Uruburetama e o Nenêm de Trairí.

Paralelo a tudo isso resolvi morar no Seminário Diocesano aos 18 anos, depois de ter passado uns três anos como seminarista externo.

Desejava ser Padre para assumir votos de compromisso pela causa do povo empobrecido... Inspirava-me em padres revolucionários da época, sacerdotes que se envolviam com bandeiras de lutas sociais, inclusive com os que se tornavam mártires, que morriam defendendo agricultores sem-terra... Era lindo saber desse tipo de morte... Queria morrer assim também. Acreditava que como Padre, dentro da estrutura de Igreja, poderia fazer acontecer muita coisa pela revolução da própria igreja... Passei a questioná-la instigado pelas próprias reflexões das pastorais sociais em torno do tradicionalismo histórico da Igreja. Não durei muito tempo no seminário... Interessava-me ensaiar peças de teatro, criar coreografias e desenhar enlouquecidamente... Cobraram-me disciplina para com as orações e agendas do seminário. Eu estava muito ausente por causa de ensaios e apresentações no bairro... Ser Igreja significava pra mim estar no meio do povo fazendo arte, romper com os muros do seminário... Resolvi depois de muitos “Retiros Individuais” sair do seminário, servir ao maior Artista do Universo: Deus, de outra maneira. Criar essa maneira.

Em parceria com dois amigos e companheiros de trabalho criamos a Fraternidade Esperança masculina, grupo de jovens consagrados à comunidade vinculado à Fraternidade Esperança de Crato-CE. Fui morar no meio do povo que eu amava: o povo do Bairro Violete. Alugamos uma casa e passamos a dividir a vida juntos como irmãos consagrados. Esse compromisso foi inclusive oficializado em uma Cerimônia linda na igreja do Violete onde fui entregue pelos meus pais no altar.

Algo no entanto me incomodava constantemente. Comecei a me sentir castrado e limitado as rotinas quase sempre utópicas da Igreja... Depois de um ano em contato direto com os moradores do Violete resolvi voltar para casa.

Tinha ânsia de me desfazer de “obrigações” e de frases como: “através disso vamos fazer isso”. Sentia que poderia ir mais além do que aquilo... Desejava fazer arte pela necessidade de fazê-la. A Igreja não mais me fascinava... O que queria era de fato criar e compartilhar disso. A Igreja estava me engessando apesar de tudo. Os tempos eram outros, a Igreja retrocedia... Portas se fechavam para Pastorais Sociais... A Teologia da Libertação estava sendo perseguida pelos chamados “carismáticos”. Leonardo Boff deixou de ser Frei e abandonou o sacerdócio revoltado com os retrocessos da Igreja Católica (parecia o fim de alguma coisa).

Enquanto isso via Zé Vicente beijando a boca de outro homem (pela primeira vez dois homens a se beijar à minha frente)... Enquanto isso me apaixonava pela primeira vez por outro homem... Percebi-me vivo para apreciar um mundo além das pastorais e além das causas sociais. Eu sou minha própria causa, eu sou essencial para mim... Precisava me encontrar urgente comigo mesmo para quem sabe estar de uma outra maneira interagindo e dialogando com as pessoas. Queria estar perto de minha mãe, principalmente porque ela passava por momentos difíceis com meu pai... Tinha que voltar pra casa sem dúvidas.

Me desvinculei totalmente da Igreja e das pastorais nesse período. Não queria rezar e nem celebrar, tão pouco discutir problemas acreditando que eles iriam ser resolvidos com utópicos engajamentos... Queria os ritos de criação apenas. Me queria.

Conheci pessoas e mais pessoas em festas que comecei a ir. Me interessava estar todo final de semana em forrós da Casa de Farinha dançando e bebendo... O profano me fascinava! Passei a conhecer outros lugares que eram habitados por pessoas... Me fascinava as pessoas. Queria o risco, sair de confortáveis convívios e me aventurar no conflito do “novo”.

Habitando clubes e festas da cidade percebi que muita gente linda dançava... Deu-me vontade de dançar com essa gente, de formar um grupo de dança com essas pessoas. Nascia aí o Dance Rua que mais tarde passaria se chamar de Grupo Balé Baião.

Como a dança me achou?

Relatos de quartos, galpões e palcos

Comecei a dançar no início da década de noventa em Itapipoca, cidade sem nenhuma tradição acadêmica de dança. Sempre tive necessidade de me expressar pelo corpo em movimentação livre, desgovernada, sem associar isso à dança. Na pré-adolescência costumava me trancar no quarto para liberar meu corpo numa descontrolada movimentação ao som de um gravador velho. Tinha como inspiração os espetáculos de dança que assistia de madrugada na TV enquanto todos dormiam. Além de analisar todos os detalhes das danças assistidas, tinha também que imitá-las tentando aprender os "passos" mais interessantes (geralmente os mais simples).

Certa vez, já na adolescência, assisti na antiga TVE (Televisão Educativa do Ceará) um bailarino solando. Seu corpo movimentava-se lentamente como se estivesse dentro d'água ou caminhando na lua. A partir desse momento quis fazer algo semelhante utilizando-me dos próprios movimentos que criava e passei a montar coreografias em solo para apresentar em eventos culturais da cidade. Nessa época já trabalhava com teatro popular. A experiência de lidar com público como ator alicerçou minhas primeiras tentativas de dançar, principalmente em se tratando de enfrentar grandes públicos como o do Festival Imperatriz da Canção de Itapipoca (FIC), evento no qual solei pela primeira vez. Lembro que apesar do grande nervosismo daquela noite, trazia comigo um grande desejo de mostrar para as pessoas o que eu sabia fazer. Tinha certeza que eu iria ser vaiado, afinal as pessoas não tinham costume de ver o que eu pretendia mostrar, porém, estava pronto para entrar em cena. Sempre fui muito audacioso. Nesse solo apresentava três momentos distintos: primeiro entrava como índio, depois fazia Zumbi dos Palmares e finalmente um mestiço. Sabia que iam rir dos figurinos, das músicas e do próprio movimento que ia mostrar, no entanto, falava mais alto a coragem. Se eu não desse aquilo pra eles quem iria dar e quando? Eu precisava ver o que iria acontecer comigo ao dançar e com as pessoas em geral. Era como um teste particular. Sempre fui curioso.

O que mais me surpreendeu e fascinou nesse solo foi a criação momentânea que nasceu de minha vontade enquanto dançava. O improvisar em plena apresentação (geralmente esquecia as marcações e criava outras) e a transformação do público no decorrer da apresentação, que foi pouco a pouco deixando de vaiar para aplaudir. Não acreditava ainda no que estava acontecendo, sentia-me inteiro, digno, pleno de alegria. Nunca mais parei de dançar.

Com o passar do tempo comecei a montar coreografias para peças teatrais e nisso passei a dividir o que sabia com outras pessoas. Às vezes me sentia meio que mentiroso por não saber muitas vezes o que dizer ou repassar para os outros. O que pra mim era dança estava sendo descoberto em minha prática intuitiva de criação individual. Tudo era muito particular.

Quando não sabia que "nomes dar" ou se faltava idéia de movimento para compor a coreografia, a única alternativa era inventar. Criava imediatamente uma palavra que resumisse o que eu estava querendo repassar ou pedir das pessoas e o próprio grupo era convidado a dar idéias para o término da dança. Rapidamente se resolvia o problema.

Não demorou para que todos começassem a me ver como o “dançarino da cidade”. Ao ouvir isso sempre sentia uma insatisfação comigo mesmo por não me achar merecedor de tal título. Era como se estivesse enganando a muita gente com uma mentira que não conseguia me livrar. Comecei a acreditar que isso poderia dar certo, queria mentir mais, inventar mais ainda que existia dançarino em Itapipoca, que a dança poderia ser possível, palpável, alguém tinha que mentir pelo bem daquela humanidade. Sentia-me desafiado a construir uma dança bem mais consistente, fundamentada em meus anseios de movimentação corporal. Pretendia me tornar seguro naquilo que estava fazendo, mas ainda não compreendia que somente pela intuição isso não seria possível. Foi aí que mais uma vez inventei uma alternativa: resolvi formar um grupo de dança para aprender mais com outras pessoas (dançarinos que descobri nas festas de final de semana). Precisava de um grupo para difundir a dança que começava a ser desenhada em Itapipoca e, sobretudo, para não me sentir o único dançarino da cidade. Desejava testar em outros corpos o que antes havia testado em mim: nascia o "Dance Rua".

Por mais que insistisse na sincronia dos dançarinos criando coreografias a partir dos ritmos e das letras das músicas, (Na época tinha fascinação em dançar os ritmos brasileiros. Coreografias a partir de temas étnicos-culturais e sócio-políticos) e mesmo que insistisse em ensaios enfadonhos, sempre quem acabava errando os "passos" era eu mesmo tendo que apelar para a conhecida improvisação. O público acreditava que meu improviso havia sido ensaiado; quanto aos dançarinos do grupo, passaram a se acostumar com minhas frequentes improvisações e não mais se admiravam com isso. A vontade de improvisar me levava sempre a incluir nos Shows de Ritmos do Dance Rua um solo meu, onde tinha oportunidade de fazer o que falava mais alto dentro de mim. Mantive esse “estilo” de trabalho durante três anos.

A partir de contatos com Andrea Bardawil (Cia Andanças), Silvia Moura, Gero Camilo (Ator cearense que fazia artes cênicas em São Paulo, militante como eu do Movimento de Artistas da Caminhada - MARCA), dentre outros profissionais da área de dança-teatro através do intercâmbio feito pela Secretaria de Cultura de Itapipoca com os mesmos (1996), passei então a me interessar pela dança contemporânea e acabei influenciando os dançarinos do Dance Rua a desenvolvê-la comigo em um novo grupo: o Balé Baião.

O primeiro espetáculo dessa nova fase: "Pátria Sertaneja, a dança do corpo rebelde", foi inteiramente coreografado por mim a partir das descobertas que tive em oficinas de dança, principalmente de sequencias coreográficas que deveriam ser feitas sincronizadamente. A grande ânsia era de "limpar" todos os gestos e movimentos dos dançarinos para que fossem fiéis ao percurso coreográfico em todos os detalhes. Pela primeira vez optei por coreografar um solo meu com marcações invioláveis. Era como se estivesse inconscientemente me preparando para uma futura libertação a partir de um aprisionamento.

Ainda nesse período tive a oportunidade de fazer algumas oficinas de Dança Contemporânea e Clássica. Apesar de achar tudo muito interessante sempre sentia dificuldades em acompanhar as variações que eram repassadas. Com relação ao Balé Clássico, procurava negá-lo por tê-lo como castrador e artificial. Comecei a ler muito sobre a história da dança e a partir da influência de alguns autores desenvolvi um imenso repúdio ao tecnicismo do balé.

Foi quando surgiu a chance de participar da audição para o Colégio de Dança do Ceará, na qual exigia que eu tivesse alguma noção de balé clássico e experiência em dança contemporânea. Além disso, tinha que apresentar um trabalho meu (Era necessário mostrar esse trabalho coreográfico para que eu fizesse o curso de capacitação de coreógrafos. Curso que desejava fazer a qualquer custo) solo ou grupal. Mostrei um fragmento do novo espetáculo do Balé Baião: "Etnia" em duo. Não teve jeito: comecei a dançar em sincronia com meu parceiro, mas em seguida quebrei com as marcações para improvisar. Para meu delírio fui selecionado e cursei o Colégio de Dança durante dois anos, tendo que trancar minha faculdade na UECE de Itapipoca (Pedagogia) e me mudar para Fortaleza. Desbravei para a capital e fui morar com o ator performance Orlângelo leal (que na época fazia o Colégio de Direção Teatral), arrumei empregos em escolas e projetos (ministrando aulas de dança para adolescentes) e passei a me dedicar totalmente ao colégio de dança.

Na semana fazia aula de balé clássico frequentemente, como também de Dança Moderna, Contemporânea, tradicional dentre outros módulos. No final de semana ia para Itapipoca dar assistência ao Balé Baião. Foram dois anos de muita persistência, ousadia e aprendizado. Na ocasião tive acesso a aulas de contato-improvisação com os melhores professores da área. Era como se tivesse encontrado o que buscava há muito tempo e não sabia como achá-lo. Quanto mais me mexia a partir de comandos que eram lançados, mais percebia que tudo o que havia aprendido anteriormente em outras aulas começava a se manifestar em meu corpo. Pensava eu que não estava conseguindo aprender nenhuma técnica de dança, talvez por não ter atenção o suficiente, corpo apropriado ou por ter passado da idade (estava com vinte e sete anos). Tudo me vinha à cabeça, menos que na hora certa meu corpo iria revelar tudo o que absorveu. À proporção que repetia aquele movimento descoberto e dele passava para outro, percebia que minha movimentação estava bem mais diversificada, segura e expansiva. Lidar com o movimento contido e explosivo em tempos diferentes, descobrir fios condutores para o percurso do gesto, escutar o meu silêncio interior, criar pelo ato de criar sem grandes preocupações com temas ou sequencias dramáticas; deixar o movimento falar por si próprio no fluxo do acaso; tudo isso passava a ser realidade no meu corpo que se movia e nas minhas concepções teóricas sobre a dança que desejava construir com o Balé Baião.

Minha grande meta passou a ser preparação técnica. Compreendi que se eu desejava ter bailarinos que improvisassem, precisava repassar para eles todos as técnicas de dança que conhecia a fim de nutri-los com novos códigos corporais que futuramente seriam base para de criação de movimento. Precisava apressar o processo de formação da Cia de forma prática e teórica, integrando a vivência corporal com o aprofundamento e a análise técnica.

Comecei a dar aulas dentro de um cronograma mensalmente organizado, sempre incluindo a prática de contato-improvisação, trabalhando exercícios aprendidos no Colégio de Dança do Ceará e jogos inéditos criados por mim em aula. Como resultado dessas vivências montei os espetáculos: "Etnia, o baião das três raças" e "Rebento, dançando o que restou".

O espetáculo "Rebento" foi um "divisor de águas" por introduzir na Cia a criação de solos e duos. Ele rompeu com todas as metodologias de criação que anteriormente foram utilizadas nos processos de montagem do Balé Baião. Deixei de mostrar com meu corpo tudo o que deveria ser feito na coreografia para que os próprios bailarinos descobrissem o seu movimento e tempo ideal. A partir de comandos que criei dentro das aulas comecei a provocar reações nos bailarinos quase sempre aproveitadas dentro de quadros coreográficos. Depois de certo tempo notei que havia desenvolvido vários comandos bem particulares, exclusivamente da Cia Balé Baião: exercícios de alongamento e aquecimento bem específicos, jogos que provocavam a criação individual e conjunta de movimento expressivo e caminhos de composição coreográfica. Decidi repetir esses exercícios em aula para melhor fixá-los e passei a analisá-los com os bailarinos da Cia para que juntos teorizássemos sobre o que estávamos fazendo. Desta maneira criou-se uma argumentação filosófica e técnica sistematizando o que seria a dança desenvolvida no Balé Baião.

Antes de qualquer outra característica o Balé Baião não mais desenvolve espetáculos com coreografias idealizadas por alguém. Os bailarinos são "donos de suas danças" assumindo a criação e a interpretação do que compuseram, dentro de uma concepção comum a todos, que funciona como fio condutor interligando uma coreografia a outra em busca de uma "dramaticidade fragmentada", desfazendo-se do tradicional "começo, meio e fim" para dar lugar a situações dançadas que tendem a não pertencer a lugar nenhum e ao mesmo tempo a todos os tempos, a história nenhuma e a todas as histórias vividas pela humanidade.

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